“Consegues imaginar Pablo, o que teria acontecido se em 1939 os chilenos tivessem obedecido às palavras de ordem da direita que clamava para que se deixasse que os espanhóis do Winnipeg se afogassem no mar?
Consegues imaginar Pablo, o que se teria passado se esse povo Chileno não tivesse levantado a voz dizendo que venham, são vítimas de um drama humanitário, que venham?
Consegues imaginar Pablo, esses 2.200 refugiados espanhóis que zarparam no Winnipeg, desde Trompeloup com destino a Valparaíso, à deriva no mar cruel dos naufrágios?
Consegues imaginar Pablo, um barco fantasma tripulado por 2.202 cadáveres, porque dois refugiados nasceram durante a viagem de Winnipeg para o Chile?
Consegues imaginar Pablo, o porto de Valparaíso vazio, sem esses cinquenta mil Chilenos e Chilenas que acudiram a receber o Winnipeg e disseram eles são nossos irmãos e não vão para refúgios, vão para nossas casas?
Esse Barco fretado por ti, Pablo, que te empenhaste até à camisa para o pagar, mas que todavia navega na memória de alguns, por certo muito poucos, foi e é a demonstração de um povo decidido a ignorar as leis se necessário, para cumprir com o elementar dever da solidariedade.
Tu imaginas Pablo, PABLO NERUDA, irmão maior da palavra Companheiro, quão bela seria a vida se o espírito do Winnipeg ardesse de Humanidade por estes dias?”
Este texto foi ontem divulgado/ publicado pelo Escritor Chileno LUIS SEPULVEDA, há muito radicado em Espanha, em Gijon, depois de perseguido após o golpe da junta militar que depôs Salvador Allende, ele que, naquela época e naquela ocasião, fazia parte da sua guarda pessoal.
Li-o e divulgo-o, porque acho meu dever divulga-lo, tanto mais que se trata de um episódio verídico e porque em poucas e singelas palavras ele nos diz como fazer o que tem o dever de ser feito.
Desde 1939 o mundo mudou muito e não será mais preciso um PABLO NERUDA, empenhando os seus proventos, alugar ele um Barco para salvar vidas. Haja vontade e isso é facilmente ultrapassado. O que falta é a outra parte : é a vontade política, o dever humanitário de solidariedade de os acolher e lhes oferecer as condições mínimas de vida, mesmo que transitória, com a dignidade mínima que qualquer ser humano e qualquer vida humana merece.
Mas o mundo tornou-se um sítio estranho para se viver e está dividido em várias castas ou categorias : os que nasceram em berço de oiro, e não escolheram nascer assim, e a quem toda a vida está à partida facilitada e tão facilitada que são educados de molde a evitarem contacto com os que nasceram no lado oposto e a quem não é necessário saber que só se pode sustentar a vida e na mesma progredir com muito esforço, com muito estudo e com um conhecimento global dessa mesma vida, coisa que a eles não faz falta pois são donos de tudo e educados unicamente para mandar. Estão, portanto, alheios a estes problemas fúteis, eles têm muita sarna para se coçarem, as suas terras, as suas empresas, a sua cotação na bolsa, os dividendos, as ameaças globais, os investimentos…eles viviam era sem trabalhadores, sem essa pobre gente que sonha ser como eles, coitados. Eles não escolheram nascer assim, mas nasceram e dominam o mundo.
Um mundo que, além deles, é composto por uma outra classe, uma classe de gente assim assim, que coabita com eles mas não são como eles pois são por eles dominados, domados como joguetes à mão do dono, são quem faz os fretes, quem tem a cabeça de fora e lhes serve de escudo, mas quando a coisa corre bem eles são bem remunerados e têm uma função primordial : a de fazer crer a muitos que ser como eles almejam que lá podem chegar, se se portarem bem, se fizerem tudo direitinho, se se deixarem de pruridos, se fizerem o que eles mandam, se os ajudarem a manter os seus lugares, esses lugares que agora são de quem são mas mais tarde serão deles, desses todos que vendem a sua consciência por dois vinténs e deixam de pensar e de olhar em volta.
Eles por aí pululam, impantes e insensíveis, os jornalistas feitos cloacas, os políticos feitos sarjetas, os empresários dos favores,os comentadores de arroto, os modernos vendilhões dos templos deste tempo. São a classe mais abjecta que existe porque, ao contrário dos primeiros, não foi isso que aprenderam e não foi isso que lhes foi ensinado. Tornaram-se insensíveis e acham que a culpa de tudo é dos outros que não pensam como eles e têm esse estranho defeito de desejarem um mundo hospitaleiro e solidário. Um mundo onde os homens sejam tratados como Homens.
Há ainda outra classe, a classe das pessoas normais. Também não escolheram nascer assim mas, nascendo assim, tiveram o privilégio de ter educação e entenderam que sem trabalho não se vai a parte alguma. Entenderam o valor do trabalho! Foi a coisa mais importante que aprenderam e aprenderam a ter regras e a viver com regras. Com regras formais e regras morais. Foram educados desde pequenos, sendo crentes ou não, nos princípios basilares que regem a vida humana e que são, na sociedade que temos, quer queiramos ou não, os que advêm dos ensinamentos estruturais de como organizar a sociedade em direitos e deveres que nos legaram os Gregos e os Romanos e os que nos foram transmitidos pela Igreja Católica através dos Testamentos e da vida e pensar de Jesus Cristo. Não preciso de os enumerar porque bem se percebe que eles estão na essência do nosso comportamento. Como pessoas normais e apenas isso.
Mas é a esta classe, a que podemos chamar de média, mais alta ou mais baixa, a quem são dirigidas e imputadas todas as responsabilidades. De não terem ambição ou não serem empreendedoras quando se recusam a entrar no jogo sujo atrás referido e pretenderem ser aquilo que não podem ser quando algo atingem e aí responsabilizados por algo que possa correr mal, na vida dos anteriores, porque não tinham que viver acima das suas possibilidades. E pagam por isso. Com redução de salários e de direitos, com aumentos de impostos e de taxas e com a ameaça de pensões diminutas face ao esforço contributivo que tiveram. E passam a viver no medo.
E estas classes, que numa sociedade em desenvolvimento foram sempre o seu motor e o elo que fazia as classes mais inferiores a ela se alcandorarem, passaram a ser o foco da culpa. De provocarem inflação e défice por consumirem e de provocarem recessão por não consumirem. De provocarem desemprego por não trabalharem e de contribuírem para o aumento do emprego quando passaram a trabalhar a tempo reduzido e com salário de miséria. E é a classe a quem é exigida solidariedade.
E resta a última. Que já não existe nem conta para nada. Que interessa se só dá despesa e só quer subsídios? Que vão, que partam, dizem eles. Mas que venham para cá sim, mas só se trouxerem dinheiro. Mas eles partem, são obrigados a partir, uns com formação á procura de vida melhor e outros, em desespero, à procura de quem os acolha, eles que fogem da penúria, da exclusão e da morte certa.
Mas o mundo dito civilizado põe-lhe muros, muros altos e farpados. E diz-lhes que voltem para donde vieram , para morrerem lá nos sítios de onde vieram gastando o que tinham e o que não tinham, porque morrer aqui dá despesa.
Triste mundo este e triste sociedade esta que perdeu a memória. A dos refugiados da guerra civil de Espanha, os da segunda guerra mundial, as vítimas dos conflitos étnicos e tantos outros. Porque partiram à aventura hordas e hordas de portugueses para França e outros países, tantos e tantos nossos parentes e vizinhos? Porquê? Não foram minimamente acolhidos e não puderam depois trabalhar? E os oitocentos mil Retornados que vieram das ex-colónias e foram por nós recebidos e foram depois parte importante no nosso desenvolvimento? Não há memória? Já tudo foi esquecido?
Ninguém escolhe nascer onde nasce, nem como nasce. Mas nasça onde nasça, e nasça como nasça, é um HOMEM que pertence ao mesmo mundo dos restantes. E SE NASCE TEM DIREITO A VIVER!